segunda-feira, 16 de maio de 2011

Finitude em Bagé

Penso que já escrevi aqui no blog sobre a prática da releitura dos clássicos. Há obras que lemos e relemos pelo prazer de acompanhar o desenvolvimento das ideias apresentadas - assim como, por vezes, vemos e revemos algum filme ou peça teatral, ouvimos e ouvimos novamente as músicas... Há alguns textos que eu procuro retomar, no mínimo, a cada ano, ainda que seja para uma passada de olhos.
Naturalmente, há clássicos e clássicos. Uma categoria deles, em especial, eu chamo respeitosamente - e não há ironia nisto - por "leitura de banheiro". Concordo com o Rubem Alves quando ele defende que deveríamos desenvolver o hábito de manter pequenas bibliotecas nos banheiros (veja no seu livro Por uma educação romântica).
Por motivos muitos, seria difícil ler Kant ou Hegel no banheiro. Husserl e Heidegger idem. Talvez os alemães exijam especial concentração. Ou sejam indigestos, quem sabe. Lá, prefiro as comédias. Quadrinhos ou irônicos ou sarcásticos, talvez até as sutis. Dia destes me deparei com o Luis Fernando Veríssimo - que não sai do meu banheiro. Transcrevo um trecho, quem sabe para ajudar a estimular alguém:

Finitude
[...]
- Te abanca, índio velho, que tá incluído no preço.
- Ai - diz o paciente. [que recebera um joelhaço, tradicional no início das consultas do Analista]
- Toma um mate?
- Nã-não... - geme o paciente.
- Respira fundo, tchê. Enche o bucho que paça.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
- Agora, qual é o causo?
- É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
- Tô te ouvindo - diz.
- É uma coisa existencial, entende?
- Continua, no más.
- Começo a pensar, assim, na finitude humana em contraste com o infinito cósmico...
- Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
- E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana. E isso me angustia.
- Pos vamos dar um jeito nisso agorita - diz o analista de Bagé, com uma baforada.
- O senhor vai curar a minha angústia?
- Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
- Mudar o mundo?
- Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
- Mas... Isso é impossível!
- Ainda bem que tu reconhece, animal!
- Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
- Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice da gorda.
- Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta...
- Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
- Me alimento.
- Tem casa com galpão?
- Bem... Apartamento.
- Não é veado?
- Não.
- Tá com os carnê em dia?
- Estou.
- Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
- O Freud não me diria isso.
- O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
- Não.
- Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
- Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta:
- É pior que joelhaço?




(Extraído de Todas as histórias do analista de Bagé, editora Objetiva)

Um comentário:

Diego disse...

Muito legal... o livro todo é assim???