terça-feira, 29 de julho de 2008

Questões políticas


Entre os meses de maio e julho estudamos no NEFiC (Núcleo de Estudos de Filosofia com Crianças)extratos do livro Entre o Passado e o Futuro, de Hannah Arendt. Estudamos com especial atenção seu primeiro capítulo, A tradição e a época moderna e o quinto capítulo, que trata sobre A crise na educação. Não vou contar aqui o que diz o texto da filósofa, que está publicado pela Ed. Perspectiva. Transcrevo abaixo alguns apontamentos que fiz, para meu próprio uso, como chaves interpretativas do texto.

1. A tradição política começa com Platão e não com Sócrates. Sócrates, um homem da prática, ocuparia o mesmo status dado pela autora a Marx, que inverte a relação teoria-prática, pondo fim à tradição.

2. Marx põe fim à tradição política não por “inverter Hegel”, mas por inverter o “status” teoria-prática, colocando a prática política como prioritária à reflexão política. “Inverter Hegel” seria permanecer no campo teórico, quando o que está em questão é extrapolá-lo.

3. Arendt, depois de Heidegger e antes de Fukuyama (dentre tantos outros) anuncia o fim de um tempo. A disputa entre modernos e pós-modernos, tradicionais e pós-tradicionais, metafísicos e pós-metafísicos não vem ao caso, bem como não parece ser o mais relevante definir se a autora está ou não certa ao afirmar que a tradição acabou. Mas o amplo conjunto de autores que aponta o fim de um tempo parece dar consistência à idéia de que “algo precisa mudar” ou, quem sabe, “algo mudou”. Está desperta a questão sobre como fazer filosofia hoje: não se constroem mais grandes sistemas filosóficos desde Kant e Hegel.

3.a. A filosofia concreta, como o existencialismo no contexto pós-guerra, também não encontra espaço no fluido cenário político do século XXI. Quem tenta fazê-la, como Chomsky, permanece como “franco atirador” (ver 3.c)

3.b. Quanto ao pensamento metafísico, parece acertada a constatação do seu fim, por Arendt – ainda que se possa discutir se são os autores apontados por ela os principais “coveiros” metafísicos. Na segunda metade do século XX, parece não haver produção metafísica consistente.

3.c. Nos demais campos, a filosofia se faz por franco-atiradores, não mais por sistemas. Seja a “segunda escola de Frankfurt” com seus dois únicos autores; sejam os lingüistas ou os pragmatistas que não se agrupam; sejam os críticos da tradição filosófica: faz-se filosofia a partir da individualidade.

4. A crise na educação é reflexo da crise da tradição. Não há como resolver problemas da educação antes de superar a crise do pensamento. E não há como superar essa prescindindo da educação. Assim, a educação não pode ocupar papel coadjuvante, mas co-autoral na superação da crise. E a crise a ser superada é a crise da tradição (entendida com as ressalvas da tese 2)

A primeira tese e seu desdobramento na segunda foram elaboradas em conseqüência de um diálogo com a Profa. Larissa Gandolfo. A terceira, de um diálogo com o Prof. Marcos Sidnei Euzebio.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Consolação contra a castidade

...vi aparecer acima de mim uma mulher que inspirava respeito pelo seu porte: seus olhos estavam em flamas e revelavam uma clarividência sobre-humana, suas feições tinham cores vívidas e delas emanava uma força inexaurível. Ela parecia ter vivido tantos anos que não era possível que fosse do nosso tempo. Sua estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras parecia atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos céus e desaparecia dos olhares humanos... Embaixo de sua imagem estava escrito um Pi [prática] e em cima um Theta [teoria]. E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento inferior ao superior. No entanto, mãos violentas rasgaram sua veste e cada uma tomou um pedaço dela...
E exclamou: “Agora é o tempo da emenda, não da lamentação!”


É assim que a filosofia, não desencarnada da imagem da filósofa, aparece na Consolação da Filosofia, de Boécio (publicada pela Martins Fontes). Um texto prazeroso em vários sentidos, mas bem pouco lido. Fica a indicação...

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Os donos do mundo

A matéria abaixo foi publicada ontem no jornal Folha de S. Paulo. Há quem diga, quando falo sobre esses assuntos (como o da reportagem), que tenho mania de perseguição. Penso que não, quando vejo o assunto estampado na capa de um jornal conservador.
Para quem não conhece ou não se lembra, a agência estadunidense Usaid influenciou muito a sociedade brasileira quando celebrou "acordos educacionais" com os governos ditatoriais brasileiros. O estrago foi tão grande que o assunto está invariavelmente presente nos livros de história e de política educacionais no Brasil. Se alguém quiser ler sobre, recomendo os textos de Dermeval Saviani.

EUA tentaram influenciar reforma política do Brasil
Via agência federal americana, instituto gastou US$ 95 mil em seminário em Brasília

Governo americano queria fazer evento coincidir com a véspera do debate do tema no Congresso brasileiro, em 2005, segundo documentos

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

Em 2005, a Usaid, uma agência norte-americana ligada ao Departamento de Estado, gastou US$ 95 mil para promover um seminário sobre a reforma política brasileira. O evento aconteceu no Congresso brasileiro, teve uma entidade local como parceira e palestrantes estrangeiros e brasileiros.
O objetivo, segundo documentos obtidos pela Lei de Liberdade de Informação norte-americana e passados à Folha com exclusividade pelo pesquisador independente Jeremy Bigwood, era fazer o seminário coincidir com a véspera da discussão do tema no Legislativo brasileiro -e um ano antes da reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva-, como maneira de "expandir o debate da reforma política brasileira".
Dois dos pontos que pareciam preocupar os proponentes norte-americanos do seminário eram a profusão de partidos pequenos no Brasil e a infidelidade partidária -e como isso parecia ocorrer com mais freqüência na direita do que na esquerda. "Embora esse padrão de fraca disciplina partidária seja encontrado em todo o espectro político, é menos freqüente nos partidos da esquerda progressista, como o Partido dos Trabalhadores", afirma um dos documentos.
"A cobertura máxima da imprensa deve ser buscada, com o objetivo tanto de instruir a imprensa política sobre as questões como estimular o debate nacional", continua o texto, que traz o título "Brazil - Support for Activity to Promote Broad Public Discussion on Political Reform" (Brasil -Apoio para Atividade de Promover Ampla Discussão Pública sobre Reforma Política).
O sucesso do programa seria avaliado conforme seis critérios, informa o documento, entre eles a "influência da conferência no debate nacional (incluindo a cobertura da mídia)" e a ""nacionalização" da conferência, de maneira que essa não seja vista como divulgadora da perspectiva dos EUA".
Essa preocupação em parecer local e não americano se manifesta em outro trecho, em que é exortado que haja contato com a consultoria legislativa via Setor Político da Embaixada dos EUA no Brasil, "devido à sensibilidade da questão".
O plano pede que todo o espectro político brasileiro seja contemplado entre os palestrantes convidados e é assinado pelo Consórcio para Fortalecimento dos Processos Políticos e Eleitorais (Cepps, na sigla em inglês), que reúne três grupos norte-americanos sem fins lucrativos que recebem fundos federais para ajudar países a desenvolver seus processos democráticos.
Um dos grupos era o Instituto Republicano Internacional (IRI), baseado em Washington, que capitaneou a operação. Criado em 1983 por iniciativa do então presidente Ronald Reagan (1981-1989), tem à frente o senador John McCain. O candidato da situação à sucessão de George W. Bush ocupa algum cargo no instituto desde 1993; hoje é o diretor de seu conselho.
Desde que Bush assumiu a Casa Branca, o orçamento anual do IRI dobrou para os atuais US$ 79 milhões. A verba vem principalmente da Usaid e do National Endowment for Democracy (fundo nacional pela democracia, ligado ao Congresso dos EUA).
Após contratempos e adiamentos, o IRI colocou o seminário em pé. Nos dias 9, 10 e 11 de agosto de 2005, no auditório Nereu Ramos da Câmara, foi realizado o evento "Reforma Política - Desafios e Perspectivas do Fortalecimento das Instituições Políticas Brasileiras".
A parceira local foi o Centro de Estudos das Américas da Universidade Candido Mendes, do Rio. Além do IRI, trabalharam na organização a norte-americana Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (Ifes, na sigla original) e a alemã Fundação Konrad Adenauer (KAS).
Na página da Câmara que anunciava o evento, o texto começava com a frase "A reforma política entrou de vez na agenda legislativa".
Ninguém recebeu cachê, e as despesas de viagem dos convidados estrangeiros foram pagas pela Usaid. Entre eles, pelo menos um nome hoje ligado à campanha de McCain.
A rigor, a entidade não quebrou nenhuma lei norte-americana. Por ser uma organização chamada 501 (c)(3), nome tirado da seção da Lei do Fisco dos EUA que a regula, ela pode operar em qualquer lugar do mundo que permita que ela opere. É o que disse à Folha Marcello Hallake, de escritório de advocacia Thompson & Knight, baseado em Nova York e especializado em organizações beneficentes. Quanto a atividades políticas, no entanto, há restrições quanto ao que uma 501 (c)(3) pode ou não fazer. Uma das proibições é lobby político -nos Estados Unidos.
Não é a primeira polêmica a envolver o IRI. A entidade foi acusada de ajudar a fortalecer os grupos que derrubaram o então presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, em 2004 -a organização nega as acusações.
Dois anos antes, no golpe frustrado que tirou do poder o venezuelano Hugo Chávez por algumas horas, o IRI soltou comunicado em que comemorava a vitória da democracia naquele país. O instituto depois se desculpou.
"Pelo passado da entidade, não me surpreende essa atuação do IRI no Brasil", disse Sarah Hamburger, do progressista Council on Hemispheric Affairs, de Washington.
Foi o último seminário do tipo do instituto no país. A reforma política brasileira não passou no Congresso até hoje.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Plect, Plect, Pau!

A sabedoria popular, o conhecimento cotidiano é regularmente recusado pelo mundo científico e filosófico. Aprendemos na academia métodos e técnicas para construir um conhecimento que se pretende superior, mais confiável (não nos perguntamos aos olhos de quem...); em outras palavras, aprendemos métodos e técnicas para fugir daquilo que chamamos senso comum. Mas, entendamos, inspirados no Rubem Alves: senso comum é o nome classificatório que acadêmicos deram a um tipo de conhecimento, para que os próprios acadêmicos pudessem definir que o conhecimento classificado como senso comum é inferior aos conhecimentos acadêmicos, críticos - sejam eles científicos ou filosóficos. Não nos atentamos que, muitas vezes, o que faz a academia é repetir, rearranjar, maquiar o senso comum, dando roupagem acadêmica a sabedorias mais ou menos amplamente difundidas (e, podendo assim, cobrar status ou dinheiro para fornecer esses conhecimentos, acadêmicos, à população em geral).
As sábias palavras de um conhecido (na verdade, do tio de uma amiga) são exemplo disso. Diz o Tio que "O mundo é de querer, errado é de fazer", máxima que ele conclui com a tão ininteligível quanto enfática interjeição "e Plect, Plect, Pau!". Dizer que o mundo é espaço dos desejos e que isso nos causa problemas é algo que foi feito por filósofos tão distintos e distantes quanto Descartes e Nietzsche, por exemplo. O primeiro afirmava que constitui problema humano possuir uma vontade infinita ao lado de uma razão finita: resultado, somos imperfeitos, erramos... Plect, Plect, Pau!
Em outra perspectiva, Nietzsche esbraveja ao dizer que queremos, somos dionisíacos, regidos pelo desejo e pelo instinto, somos contraditórios e incoerentes porque dominados pelo nosso querer; mas a hipócrita moral da raça humana determina que "errado é de fazer". Isso condenou a humanidade à condição que o autor chama de rebanho humano. Você deseja, não satisfaz. Plect, Plect, Pau!
Pergunto, antes de terminar, por que tiro Descartes e Nietzsche de seu eterno descanso, trazendo-os para esta postagem? Naturalmente, para referendar algo - é por isso que tantos autores são tão citados nas tantas notas das boas teses -, neste caso, a máxima do Tio. Autoridades como o pai da modernidade ou o filósofo das marteladas me permitem confirmar a tese inicial desta postagem, que há conhecimento válido, útil, verdadeiro, no senso comum. Os autores consagrados referendam o Tio.
Claro que isso aos olhos do mundo acadêmico. Sobre essa balela toda de Descartes, Nietzsches e outras filosofias, o Tio, dono de si, afirmaria com precisão: Plect, Plect, Pau!

(Postagem originalmente feita no Blog do Nefic)