domingo, 4 de novembro de 2007

Marighella

É fácil ser revolucionário hoje. No geral, os partidos comunistas no Brasil - e em nenhum canto do mundo há tantos! Legais e ilegais, PCB, PCdoB, PCO, PSTU, PSOL, PCBr, PCML e por ai vai... - se acomodam sob a idéia de que "a revolução não está às portas" (não está prestes a acontecer), e então é melhor esperar. Ou então com a idéia de que "estamos em plena revolução permantente", de modo que qualquer manifestação insignificante ganha força de ato revolucionário...
Em 4 de novembro de 1969 tombava um dos grandes revolucionários brasileiros.
Com a envolvente paixão que só os (bons) homens da religião são capazes de empreender, foi assim que Frei Beto descreveu o contexto da morte de Marighella:

"Foi na realidade uma noite do povo", publicou O Globo em sua edição do dia seguinte. Espetáculo de gala no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Pelé teria festejado seu grande dia se o resultado fosse ao contrário. Mas foi o Cotíntians que marcou quatro gols no Snatos. Magnífica atuação do time od Parque São Jorge. A equipe praiana fez apenas um tento. E não foi de Pelé, foi de Edu.
Os portões foram franqueados ao público. Arquibancadas repletas, torcidas excitadas, tambores, cornetas e apitos alegrando a noite de terça-feira, 4 de novembro de 1969. Banceiras coloridas flutuavam sobre a multidão que aplaudia o desempenho de seus times.
Bem que Pelé tentou. Mas não seria ainda dessa vez. Quando ele dominava a bola, o coração da torcida batia acelerado. Poderia ocorrer a qualquer momento. rivelino, porém, robou-lhe a noite e balançou a rede adversária duas vezes. Pelé permaneceu na soma de novecentos e noventa e seis gols ao longo de sua brilhante carreira. Não seria ainda dessa vez que ele marcaria o milésimo gol.
A contagem foi aberta aos vinte e cinco minutos. Rivelino centrou forte para a pequena área, Ivair entrou livre e tocou a bola para dentro da meta do goleiro santista. A torcida corintiana explodiu: a euforia reboava, as cornetas soavam estridentes, as baterias assemelhavam-se a disparos acelerados de canhões em salvas de tiros. Aos trinta e dois minutos, Benê tentou cortar Joel e Ramos Delgado, sendo derrubado pelo primeiro. de pé esquerdo, rivelino bateu a falta, chutando entre a barreira do Santos para ver a pelota enroscar-se no fundo da cidadela de Agnaldo.
No intervalo do jogo, a torcida movimentava-se, agitada. O cheiro de suor misturava-se ao hálito úmido do clima chuvoso da noite quente. Dedos nervosos cruzavam, entre mão estendidas, dinheiro, pipocas, refrigerantes, sanduíches, amendoim torrado. Possantes holofotes cobriam com um véu branco o gramado verde do Pacaembu. Nos vestiários, os times recobravam fôlego. de súbito, um ruído metálico de microfonia ressoou pelo estádio. um ajustar de ferros puxados por corrente elétrica. Cessaram as batucadas, silenciaram as cornetas, murcharam as bandeiras em torno de seus mastros. O gramado vazio aprofundou o silêncio curioso da multidão. O locutor pediu atenção e deu a notícias, inusitada para um campo de futebol: "Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella".


Extraído do livro Batismo de Sangue, de Frei Betto (São Paulo, Círculo do Livro, 1982). Foi mantida a grafia da edição.