quinta-feira, 24 de março de 2011

Arendt, hoje

Em um de seus trechos que mais aprecio, escreve Hannah Arendt, em 1958:

A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O mundo - artifício humano - separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos. Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar "artificial" a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, "sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores" e "alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função"; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.
Este homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana talcomo nos foi dada - um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico - e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.


Em uma notícia publicada no caderno Folha Ciência, da Folha de S. Paulo, hoje:
Japoneses criam espermatozoides em laboratório

Grupo de cientistas é o primeiro a cultivar as células masculinas em laboratório desde os estágios iniciais

Avanço aconteceu com camundongos, levando à criação de animal saudável; ideia é tratar humanos inférteis


GIULIANA MIRANDA
DE SÃO PAULO

Cientistas do mundo inteiro tentavam há quase um século, mas só agora um grupo conseguiu: pela primeira vez na história foi possível criar espermatozoides de um mamífero em laboratório.
A experiência foi feita com camundongos, mas o objetivo é adaptar a técnica para resolver problemas de fertilidade em seres humanos.
Os espermatozoides, criados por pesquisadores japoneses da Universidade da Cidade de Yokohama, conseguiram dar origem -por meio de fertilização in vitro- a descendentes, machos e fêmeas, saudáveis e férteis.
Isso aconteceu até quando as células colhidas haviam passado algum tempo congeladas. É um fator que tradicionalmente atrapalha o sucesso da fertilização.
Para chegar ao resultado, os cientistas retiraram, por meio de uma biópsia, células dos testículos de camundongos recém-nascidos, com dois ou três dias de vida.
Esse material tinha apenas gonócitos e espermatogônias, estágios primitivos do complexo processo de formação dos espermatozoides.
Os cientistas tentaram fornecer quase todos os componentes da formação natural das células. Para que elas se desenvolvessem totalmente, eles adicionaram KSR, produto muito usado em culturas de células-tronco.
Após cerca de um mês, eles confirmaram a produção dos espermatozoides. As culturas continuaram produzindo essas células durante cerca de dois meses.

Um comentário:

Gentil Martins dos Santos disse...

A foto da Hannah já diz tudo, professor...

Talvez o idiota do Heidegger esteja certo - pelo nisso -: Estamos a caminho de um "novo começo"... depois que destruimos a vida "humana" é hora de completar o ciclo...

Ela tinha Marx na veia... Aliás, é este norte esquecido do Marx que pode nos trazer alguma luz...

Mto bom professor!

Gentil