quarta-feira, 16 de março de 2011

Princípio do movimento

ou filosofar como tormenta.

O princípio do movimento é um elemento que ocupou, se não ocupa, lugar destacado nas diversas culturas que tive até hoje oportunidade de estudar. Antes dos elementos essenciais, entendidos química ou metafisicamente, o movimento foi preciso. Um verbo, um sopro, uma junção improvável de moléculas – tanto faz. O movimento foi necessário para que o início assim se configurasse.

Diversas lendas africanas tratam de formas distintas este princípio. Em uma espécie de síntese de parte destas, Pierre Verger, o Fatumbi, fala em uma certa divindade “de múltiplos e contraditórios aspectos [...], pois é dinâmico e jovial”. Como característica explícita do movimento que lhe era inerente, relata que esta figura divina “veio ao mundo com um porrete, chamado ogò, que teria a propriedade de transportá-lo, em algumas horas, a centenas e quilômetros e de atrair, por um poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes”. Algumas das versões encontradas atribuem a esse deus a origem do movimento do mundo: teriam sido necessários dois deuses para que o mundo existisse – um que o teria criado, tão imprescindível quanto o outro, que o teria posto em movimento.

Devedores diretos e indiretos dos conhecimentos africanos, os primeiros pensadores gregos reservaram ao princípio do movimento especial importância em suas construções. Relata Sêneca que o próprio Tales, arbitrariamente chamado de primeiro filósofo, identificava que a terra se movia sobre a água; que a água também se movia, sendo ela, a água, o princípio de todas as coisas. Mas foi em Éfeso, com Heráclito, que o princípio do movimento ganhou a primeira formulação consagrada na tradição filosófica. Sua afirmação mais difundida é sobre o fluir incessante das coisas, simbolizadas pelo rio: “Descemos e não descemos nos mesmos rios; somos e não somos”. O desdobramento, muitas vezes se omite: “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”; “Correlações: completo e incompleto, concorde e discorde, harmonia e desarmonia, e de todas as coisas um, e de um, todas as coisas”. Daí que “Em nós manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente”.

A contradição não é vista como diverso do um, mas como parte de uma espécie de todo. Talvez Horkheimer e Adorno tenham caminhado sobremaneira próximos a este entendimento quando concluem que a arte, como expressão não filosófica, era necessária para que a filosofia se fizesse plena tanto em suas competentes formulações quanto em sua decência ética – em ambas as qualidades, não apenas na primeira. E que a desqualificação da arte que presenciavam no século passado, ocasionada pela cooptação do fazer artístico pela indústria cultural, fazia desqualificar a própria filosofia. Não havia sua contradição, sua expressão de negação.

Não tive, ainda, oportunidade de conhecer mais profundamente a obra de François Laruelle, com quem estudou Danilo Di Manno. Naquilo que li, dois livros e um pequeno punhado de textos soltos, penso que pude identificar uma espécie de correlação parcial entre sua percepção – de Laruelle – e a dos autores de Frankfurt. A tarefa proposta por Laruelle é a do movimento como tormenta filosófica. Ou uma espécie de filosofar atormentado(r). A necessidade de desestabilizar o estável o justifica. À filosofia, é preciso algo que se imponha, para que ela continue sendo, e não venha a ter sido. Não há filosofia sem filosofar, e não há filosofar sem movimento. A tormenta, ou o tormento, põe-na em movimento.

A proposta do filosofar como tormenta não tem no movimento da não-filosofia uma expressão única, mas singular. E, parece, não há no conjunto da Bibliothèque de non-philosophie obra mais atormentadora que Pour une imagination non-européene. Não suficientemente satisfeito em contribuir com a filosofia por meio da árdua tarefa de lhe fazer oposição, caminhar na contramão, ser contrário para manter o um, Danilo Di Manno aparece como brilhante radical no próprio contexto do contraditório. Para além de fazer não-filosofia, dedica-se ao estudo da imaginação, em lugar da razão – filosófica desde sempre. Para além de estudar a imaginação, propõe-se a abordá-la de forma não-europeia, pensando, portanto, desde um território originário não-filosófico segundo a tradição que precisava, como tarefa, ser contestada, atormentada. Com ele, a figura do Estrangeiro, que permeia textos da não-filosofia, ganha radicalidade. E a figura do Ecônomo entra em cena, na construção das metáforas – tão comuns – que só por um terceiro-mundano poderiam ser elaboradas com tamanha estrangeiridade, beirando um non-rapport.

Este princípio assumido pelo nosso filósofo, parece, manifestou-se de formas muitas em seus textos posteriores e em suas comunicações dos últimos anos. Lá sempre estava o Estrangeiro, capaz de desnudar o Ecônomo, seja como personagem manifesto, seja como autor das ideias que se expressavam. Também manifestou-se este princípio na forma como se fez presente o filósofo na Universidade: desestabilizando a instituição demasiado instituída, em nome dos seus próprios valores instituintes. Talvez concordasse com Heráclito, interpretando-o neste sentido, ao ler que “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei”. Rompe com a estabilidade. Põe em movimento.

Era o movimento constante em busca de gerar sempre a maior tormenta impossível, visando pôr em giro o que estivesse parado, ou desestabilizar o que já se estivesse movendo em calmaria.

Em acordo com sua obra, sua morte foi rápida, surpreendente, provocativa. Inesperada.



Daniel Pansarelli
em memória do primeiro mestre.

11 comentários:

Anônimo disse...

Oi Daniel.
Passei aqui para lhe dar um abraço, parabenizando-o pelos seus pensamentos em palavras, e acima de tudo, compartilhar o silêncio na lembrança saudosa de um amigo-professor/professor-amigo.

Ainda me lembro das aulas do Danilo, inquietantes, reflexivas, um “movimento” do saber.
Afetos-Pensamentos-Discurso....


Miro

Professora Suzeti disse...

Prof. Daniel,
Quero deixar aqui o meu abraço e dizer de que gostava muito do Prof. Danilo. A forma como ele nos fazia refletir em relação ao espaço que ocupamos no universo ajudou-me muito como pessoa e como profissional. Compartilho com você esse momento de ausência.
Beijo no seu coração.
Suzeti.

Anônimo disse...

Olá!
Estou me sentindo agora exatamente como me sentia em suas aulas: atônita!
Eliane

Unknown disse...

Olá querido professor!

Deixo aqui o meu abraço e solidariedade e já que em um pequeno momento dividimos o mesmo mestre que tanto nos fez refletir.

Alessandra disse...

Compartilho da perplexidade e silêncio diante da perda.

Abraços.
Alessandra.

Alex Couri disse...

Tive apenas um contato com ele em uma palestra mas foi o suficiente pra saber q era um cara diferenciado...realmente uma pena ter partido tao cedo..

Anônimo disse...

E aí Dani, novamente, um abraço solidário...Bacana ver as manifestações aqui também. Depois se quiser, passa la no blog e leia as de lá também (http://hamatos.wordpress.com/2011/03/17/1s-manifestaes-da-intromisso-de-danilo-di-manno-em-nossas-vidas/) Hugo.

Márcia Alcântara disse...

Simplesmente as palavras não saem... por hora, apenas o choro.

infinitamente triste
Márcia Alcântara

Ofélia disse...

Oi, Daniel.
A filosofia brasileira perde um filósofo. Uma pena! Conversei com o Danilo apenas duas vezes, o suficiente para ficar chocada com a notícia. Só nos cabe filosofar e lembrar do colega como mais uma provocação em nossas vidas.

Anônimo disse...

MEMORIAL por Danilo Di Manno de Almeida

“O que diz um memorial senão aquilo que as condições
presentes lhe permitem dizer? Essa limitação começa no próprio
narrador de sua história, antes que qualquer possível censura
ideológica ou de outra espécie entre em cena. É o próprio
narrador de suas memórias que impõe os seus limites. E nem
todos esses limites estão evidenciados em nós mesmos. Não
sabemos nem conseguimos dizer tudo aquilo que gostariamos de
dizer; OUTRAS VEZES, HÁ COISAS QUE NÃO QUERO DIZER, QUE NÃO POSSO,
QUE NÃO DEVO, que não querem que eu diga; OUTRAS, PARA AS
QUAIS NÃO CHEGARAM AINDA AS CONDIÇÕES DE SEREM PRONUNCIADAS (...)”

Tudo começa por aqui

“Com respeito ao escolar, meus pais se estavam atentos à
minha instrução. Dois fatos me tiraram momentaneamente da
escola pública para a privada. Primeiramente, a morte de meu
irmão bebê Gilzinho, aos três meses de idade. Fiquei profundamente
chocado e marcado. Que decepção aos 8 anos de idade
ver partir sem nenhuma prevenção aquele que seria meu
parceiro num lar em que eu era a única criança. Sem que alguém
houvesse preparado meu coração infantil, acreditava que
a multidão presente em minha casa se juntava a mim para comemorar
o retorno do Gilzinho do hospital. De fato, como
vim a sentir dolorosamente horas depois, estavam todos ali para recepcionar o seu corpinho inerte, seguido de um caixão
que deveria abrigá-lo eternamente.

Precedentes escolares haviam precipitado a mudança. A minha ficha corrida do primeiro ano escolar na escola pública não era muito alentadora. Minha professora havia batido com uma régua numa cabeça de sete anos de idade (não foi antes
porque só conheci a escola, felizmente, depois de ter completado sete anos). O deveria fazer? Não tive dúvida. Diante da situação, peguei minhas coisas, sai da sala, correndo. Encontrei a porta da entrada aberta, sem que os funcionários pudessem me impedir e fui para minha casa. Não me lembro o que teria acontecido depois. Só me lembro que aguardava o ônibus escolar, cabisbaixo e entristecido, que me levaria à escola diocesana, freqüentada pela elite assisense da época”.

Somadas mais alguns espantos particulares aos espíritos dos filósofos, de certo, é preciso agarrar alma que parece querer escapar... ora transbordar... (é o que vemos em muita gente) na verdade, parece que em algum momento daquela idade alguma coisa se fez/era grande demais... muito violento. Imaginemos quanto não foi à intensidade daqueles fatos na sua vida, quão profundo não foi... Nós que somos adultos (siii!), morte como a dele nos atinge com uma magnitude incalculável...

Há muita coisa daqueles que senhor cita no Danilo, professor. Especialmente de Adorno. Basta lembrar o que Adorno fala do desespero – sem ele não há como sustentar objetividade do mundo. Estamos diante de um desespero consciente. Sua lembrança do rio de Heráclito é esclarecedora de alguma disto tudo.

A vida de filósofo do Danilo apenas começa.
Gentil

Anônimo disse...

Laroiê!Exú!! Salve mestre!