quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Correspondências

Muito da filosofia se fez por correspondências. Tantas são as vezes em que cartas trocadas entre filosófos são base de sustentação das mais diversas teorias interpretativas acerca da obra de um ou de ambos os correspondentes.
Tão comuns nos séculos passados, as cartas estão hoje quase que substituídas pelos e-mails, chats, messengers etc., que se por um lado facilitam a comunicação, por outro "banalizam-na", tornando as correspondências menos elaboradas e conseqüentemente menos célebres.
Há alguns anos atrás, troquei correspondências com uma amiga, da área das letras, numa brincadeira literário-filosófica. Na ocasião ela fazia pesquisas sobre a clonagem como forma de reprodução humana, em substituição aos métodos "mais usuais". Hoje, relendo nossa correspondência, não posso deixar de achar graça. Reproduzo abaixo uma carta, esperando que seja lida no mesmo tom seriamente anedótico em que foi escrita:

Prezada Senhora,

“Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexo, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações” Estas palavras com as quais inicio a presente carta não são minhas, confesso. As tomo emprestada do célebre filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche, e o faço por dois motivos: o primeiro e mais evidente se considerada a natureza desta mensagem, diz respeito à reafirmação da necessidade da dualidade dos sexos para a procriação animal, humana e, nietzscheanamente falando, super-humana. O segundo motivo do pouco usual empréstimo que inicia esta carta é, acredito, o mais importante. A dualidade entre Apolo e Dioniso que marca o modo de ser da humanidade desde os gregos até nossos dias. Nem só de razão se faz a espécie humana, e nem só de paixão. Espero mesclar os dois deuses gregos, meio-irmãos, na breve argumentação que seguirá.
Findo o Século XX, grande parte dos filósofos do mundo clamam pelo fim da modernidade, apontando que estamos em vias de superação do paradigma newtoniano-cartesiano. É nesta modernidade que o já antiquado Darwin se insere. Nietzsche também. Baseado em Darwin, Nietzsche apontou claramente em seus textos a superação da espécie humana pela sua próxima etapa na escala da evolução: o homem, parente próximo do macaco, seria algo ultrapassado frente ao super-homem – a nova espécie. Também a partir do darwinismo, o filósofo alemão pode afirmar quais, dentre os homens, superariam seus próprios limites, passando à condição de super-homem. Quais? Os mais preparados, é claro; a lei de seleção natural separaria os senhores dos escravos, quase símios.
Mesmo sendo detentor da mais incisiva radicalidade, a qual lhe conferiu o título de “filósofo das marteladas”, Nietzsche jamais conseguiu ser totalmente dionisíaco – e talvez nem o quisesse, justamente por saber da impossibilidade de conseguir sucesso nesta empreitada. O mais radical dentre os filósofos não pretenderia ser apenas Apolo – não, isso seria “cartesiano” demais para um super-homem; Dioniso e Apolo agiriam dialeticamente no intelecto do homem, numa constante e conflituosa tensão que é a mais genuína expressão da característica de humanidade do ser humano.
Mas a dualidade dos deuses meio-irmãos não é mais presente em nossas vidas do que a dualidade dos seres em suas relações sexuais, mesmo nas mais animalescas – para utilizar um termo do filósofo Martin Heidegger, que tanto versou acerca da animalidade humana. Mesmo Nietzsche teve de perceber. “A mulher perfeita – diz ele – perpetra literatura do mesmo podo que perpetra um pequeno pecado: experimentando, de passagem, e volvendo a cabeça para ver se alguém se apercebeu disso, e a fim que alguém se aperceba disso...”. A procriação resulta do mais prazeroso dos pecados, mas não importam os pecados se Nietzsche matou deus quando escreveu sua Zaratustra. Até mesmo para que sobrevivessem como super-homem apenas os mais fortes, a singularidade de cada ser precisaria ser mantida – se fossem todos iguais, só haveria fracos!
Ora, senhora, esta longa introdução aborda um tema sem nomeá-lo devidamente. Mas ainda que a nomeação venha apenas agora, tardia, estimo que as colocações supra tenham conseguido transmitir minha posição sobre a polêmica em questão: a dualidade, que caracteriza a forma de reprodução animal desde o surgimento do mundo, é característica própria à humanidade e às sociedades. Não se vive sozinho, não se cresce sozinho, não se desenvolve sozinho... não se procria sozinho! Nietzsche pergunta e afirma: “Desejarias multiplicar-te por dez? Por cem? Procuras adeptos? – Procuras zeros!” Não se multiplica a si mesmo, sem se criar zeros, vazios. Não se fabricam homens ou super-homens em laboratórios. Não é humano!
Mas para que fique clara minha argumentação, ressalto, obviamente não me refiro à capacidade de auto-reprodução por meio de métodos aberrantes. Estou certo de que temos condições objetivas de criar toda uma humanidade de clones; assim como temos armamento nuclear com capacidade de destruir o planeta dezenas (?!?!) de vezes. Mas se se clona, ou se se desenvolve mais armas nucleares, é muito mais por um fetichismo egocêntrico da capacidade científica do que por uma necessidade humana: a humanidade viveu sem clones e sem bombas atômicas por milênios – e viveu melhor!
Se fui pouco usual em iniciar esta carta com uma citação, a encerro de igual maneira. Mas desta vez valho-me da filósofa Hannah Arendt, autora d’A condição humana (1958):
“Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais”.
Na incapacidade de uma decisão sóbria da ciência e da política, chamo para a filosofia a responsabilidade de uma resposta. E respondo pela manutenção de Apolo e Dioniso na perpetuação da espécie.

Com estima e respeito,

Filósofo.

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